Conto - Parte 9C- Ecos
A
cidade de São Yaroslav estava atônita, um som amedrontador fez com
que a maioria dos edifícios da cidade estremecessem. Não era o som
de uma explosão, era como se um raio tivesse caído muito próximo
da cada morador da localidade. De alguma maneira todos ali sabiam que
o que haviam presenciado tinha relação com a Universidade. É claro
que as imagens de um dos prédios da Universidade parcialmente destruído capturadas a
partir de um helicóptero, exibidas em todos os canais de TV dias
depois, apenas confirmaram o que os moradores já sabiam.
Logo,
os militares isolaram o campus, ninguém, nem mesmo os profissionais
e diretores da entidade acadêmica tinham autorização de entrar em
suas dependências sem autorização do Estado-Maior das Forças
Armadas.
Notícias
sobre o acontecimento correram o mundo, não demorou para surgirem as
comparações com Chernobyl. Teorias da conspiração pipocavam na
internet. Um vídeo no Youtube contava a estranha história do
eletricista que viu um DeLorean surgir do nada, diante dos seus olhos
e de como ele desapareceu sem deixar rastros. No Brasil, o blog Mundo
Gump relatava a bizarra história de um dos mais promissores
estudantes de física do país, que foi fazer intercambio na Rússia
e acabou envolvido no maior incidente desde a explosão do reator
quatro da usina ucraniana.
O
Governo Russo teve de dar explicações ao Conselho de Segurança da
ONU. É lógico que os americanos não iam perder a oportunidade de
pressionar o antigo rival para conseguir mais um acordo para
diminuição do arsenal nuclear. Mesmo com relatórios de várias
entidades ao redor do mundo dizendo que, apesar das aparências, não
houve emissão de material radioativo na atmosfera.
Um
grupo terrorista Chechêno chegou a assumir a “autoria” do
atentado, o que logo foi desmentido.
Apesar
da magnitude do Incidente Yaroslav, como ficou conhecido, o número
de vítimas foi incrivelmente pequeno, sendo apenas uma delas fatal.
As outras duas vítimas eram dois alunos que se encontravam no prédio
da faculdade de física da Universidade, a cerca de 450 metros do
edifício atingido. Eles foram vítimas do que poderia ser chamado de
inexplicável e inacreditável acidente vascular cerebral simultâneo.
Um rapaz e uma garota.
* * *
-Você
parece cansado.
Dimitri
levantou a cabeça para olhar o rosto da enfermeira.
-UUAAHHHHH…
tô mesmo. - respondeu o jovem se espreguiçando.
-Já
faz dias que não sei o que é dormir numa cama… Alguma novidade?
-Bem,
os médicos descobriram a origem da hemorragia, foi no Hipocampo,
órgão relacionado a memória.
-Nos
dois?
-Sim!
Não é incrível! Os dois sofreram do mesmo mal súbito, ao mesmo
tempo e com as mesmas características!
-É,
só que Valeska já está se recuperando, já o meu amigo…
-Calma,
essa é a única diferença entre os dois, o dela foi menos severo do
que o do rapaz brasileiro. Tenha fé, ele vai se recuperar.
-Sou
estudante de física, fé não faz parte do nosso currículo.
A
enfermeira respondeu apenas com um sorriso condescendente e saiu. Não levou a mal a resposta atravessada do jovem, ela sabia que ele estava no seu limite há algum tempo.
Dimitri
resolveu se levantar do sofá onde passou os últimos dias, aguardando alguma melhora no quadro de seu amigo Ronaldo, que estava em coma
desde o ocorrido na Universidade. Foi até o andar inferior visitar
sua colega de classe. Quando chegou ao quarto da amiga viu seus pais
se despedirem dela, estavam saindo para almoçarem num restaurante
perto do Hospital Tsentralnaya, em Moscou. Os dois tiveram de ser
transferidos para a capital, já que a pequena cidade de São
Yaroslav não oferecia uma instituição adequada para o tratamento
das vítimas.
-Olá,
Valeska! - cumprimentou Dimitri.
-Oi!
- respondeu a amiga, com um sorriso no rosto, acomodada no seu leito
de hospital. Ela ainda tinha uma bolsa de soro com medicação ligada
ao acesso em sua mão direita.
-Como
você tá?
-Bem
melhor do que ontem.
-E
as dores de cabeça?
-Ainda
tenho, mas estão diminuindo.
-Que
bom!
-Mas
ainda ando tendo aqueles sonhos…
-De
você velha?
-Isso.
Parece que só vejo imagens desconexas como um filme do Truffaut. O
psiquiatra disse que, ou eles podem se tornar mais claros com o
tempo, ou desaparecem por completo. Só o tempo vai dizer. E o
Ronaldo? Alguma mudança?
-Tá
na mesma…
Ficaram
ali conversando por mais algum tempo até que a fome falou mais alto
e Dimitri foi procurar algo para comer.
E
assim, o tempo passou, os dias se tornaram semanas e as semanas,
meses. Dimitri teve de voltar para a universidade, continuar os
estudos. Foi com grande dor no coração que ele teve de fazer isso
pois sabia que o amigo não tinha mais ninguém para cuidar dele.
Ilyana, a namorada, não pôde visitá-lo, a eventual descoberta da
ligação de Medvedev com a moça, durante a investigação do incidente, e a equipe de projeto e suas intenções, a
colocou na mira dos órgãos de segurança do país e estava presa,
junto com os outros, aguardando um julgamento que previa uma pena
pesada para os envolvidos.
Valeska,
por outro lado, não conseguiu se afastar de Ronaldo. Se transferiu para a
Universidade de Moscou a fim de acompanhar a evolução do quadro do
amigo. Ela sentia que havia uma ligação muito forte entre eles,
algo que não havia antes do incidente, era uma coisa que não
conseguia explicar. Ela o visitava toda semana.
E foi
numa manhã particularmente gelada do inverno russo, quando Valeska
se preparava para mais um dia na faculdade, que seu celular tocou.
* * *
Ronaldo
abriu os olhos, a luz ofuscante gerada quando o objeto arremessado
pelo estranho atingiu a máquina, feriu seus olhos. Aos poucos, sua
visão voltava. Quando pôde enxergar normalmente, percebeu que
estava na sala de controle do laboratório de Medvedev, seu corpo
jazia sobre os controles e o de Valeska ao seu lado.
-Ah, está de volta!
Ronaldo
dirigiu seu olhar para o estranho que surgira do nada e resolvera a
situação complicada em que se encontrava. Este se aproximou e
estendeu a mão para ajudá-lo a se levantar, suas pernas ainda doíam
devido a descarga elétrica do primeiro artefato arremessado que dera
cabo do professor. Com um pouco de desconfiança, Ronaldo acabou
aceitando a ajuda.
Ao
se levantar, o jovem deu uma boa olhada ao seu redor. O ambiente
estava estranho, tudo se movia lentamente, ele podia ver partículas
de poeira se movendo lentamente no ar, uma olhada mais atenta e ele
poder ver um limiar luminoso se afastando bem devagar, percebeu que
eles estavam dentro de uma esfera luminosa que, aos poucos ia se
expandindo e engolindo tudo ao seu alcance, o centro da esfera era a
máquina antigravidade, ou o que restou dela.
-O
tempo se move lentamente aqui dentro, mas logo vai acabar.
Ouvindo
isso, Ronaldo dirigiu sua atenção ao seu salvador e um frio
percorreu sua espinha.
-P…
Pai…?
O
homem deu risada.
-Lamento,
não sou seu pai.
Ronaldo
raciocinou alguns segundos. Aquele homem era muito parecido com seu
falecido pai mas tinha algo em seus olhos que lembrava outra pessoa.
-Mas
sempre me disseram que eu tinha os olhos da minha mãe. - Completou o
sujeito, como que adivinhando o que Ronaldo pensava.
Os
olhos do rapaz de arregalaram.
-NÃO!!
Você… eu…
-A
mesma pessoa. - concluiu o estranho – Só que, como poder ver, mais
velho,,.
-C…
como?
-Essa
não foi a nossa primeira tentativa de destruir a máquina. E também
não foi a última. A cada fracasso, a cada tentativa a história se
repetia, o Evento, as mortes, a partida do Módulo… enfim. A única
diferença é que, por algum motivo, me lembrava da cada uma delas.
No início, eram pesadelos, depois, as memórias ficavam claras. Mas
nunca consegui chegar tão longe quanto nessa tentativa específica.
Aqui, nesse momento, foi quando chegamos mais perto.
-Por
que?
-Por
causa dela. - apontou para o corpo de Valeska.
-Depois
dessa vez, não chamei mais o módulo de volta. - revelou “Ronaldo”,
com o rosto consternado – Não queria vê-la morrer de novo nos
meus braços… simplesmente não queria passar por isso de novo…
mal suportava vê-la partir com os outros.
-Entendo…
-Foi
então que percebi que precisava dela para colocar um fim a tudo
isso. Então me pus a estudar, tinha que descobrir como voltar a esse
exato momento. Foram anos de estudos e descobertas. Aprendi coisas
sobre a Universo que vão levar décadas para descobrirem! Tudo só
para estar aqui neste momento. Para por um fim nesse pesadelo.
-Quando…
Vinha para cá, tive visões…
-Ecos
de tentativas posteriores ou anteriores, não sei ao certo, foram
tantas que as linhas temporais comeram a se cruzar. Tudo ficou uma
zona.
-Medvedev
precisava morrer?
-Acredite,
não tinha outro jeito. Ele era muito aguerrido ao seu objetivo.
-E
a máquina? O que fez com ela?
-Basicamente…
inverti a polaridade das bobinas nas anteparas. - Disse “Ronaldo”
com um sorriso maroto nos lábios.
Ronaldo
deu mais uma olhada em volta e deu de ombros.
-Bom,
é o fim. Logo o fluxo do tempo vai se reorganizar e a nossa
existência vai ser apagada, sem deixar rastros…
-É
isso mesmo…
Ronaldo
começou a sentir uma sensação estranha, como se tivesse entrado
numa correnteza que, gradualmente, aumenta da intensidade. Ele olhou
para sua contraparte.
-Já
começou. - declarou sua versão mais velha.
Sabendo
que não tinham muito tempo, a contraparte de Ronaldo estendeu a mão
para sua versão mais jovem. Eles deram um aperto de mãos que logo
se tornou um abraço.
-Fez um bom trabalho. - disse Ronaldo.
-Nós
fizemos. – replicou sua contraparte do futuro.
Então,
o mundo se desfez como poeira levada pelo vento, e tudo ficou escuro.
* * *
-...dormindo
agora… pode aguardar aqui...
-...queria
vê-lo acordado...
A
consciência retornava lentamente, como quando se desperta de um sono
pesado. Palavras ao longe chegavam aos ouvidos. Ronaldo abriu
lentamente os olhos, estava em uma cama de hospital. Bolsas, do que
parecia ser soro, pendiam sobre sua cabeça. Reparou nas pequenas
mangueiras que saiam delas e iam até seus braços. Tentou se colocar
sentado na cama quando sentiu a leve pressão sobre seu peito.
-Acho
que ainda é cedo para se levantar.
Os
olhos do rapaz encontraram o belo rosto de pele clara pontilhado de
pequenas sardas com olhos que mais pareciam esmeraldas radiantes e
sorriso gentil, emoldurado pelos cabelos vermelhos de Valeska.
Ronaldo
voltou a se acomodar em seu leito.
-Oi.
- foi a única coisa que conseguiu dizer.
-Oi.
- respondei a moça com um sorriso.
-O... que aconteceu?
-Ninguém
sabe, acho que nunca vão saber… - respondeu a moça.
-Tive
sonhos estranhos…
-Com
um veloceraptor? - perguntou a moça
Ronaldo
se espantou
-E
um DeLoream…você estava...
A
moça segurou a mão do rapaz.
-Shhhh…
Logo vai perceber que temos mais coisas em comum… Bem-vindo de volta, Ronaldo.
Ronaldo
nunca tinha ouvido seu nome pronunciado de maneira mais doce.
Enquanto segurava a mão de Valeska e contemplava a maneira como ela
olhava em seus olhos, o rapaz sentiu que havia uma forte e repentina
ligação entre eles. E teve a sensação de que, não importava o
que tinha acontecido ou o que o futuro reservava para ele, nunca mais
se sentiria sozinho novamente.
FIM
Conto - Parte 9C- Ecos
Reviewed by Tulio Roberto
on
4/06/2017 08:27:00 AM
Rating:
Nenhum comentário